Cartas de Veneza

by Robert Dessaix | Literature & Fiction |
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Journal Entry 1 by prytkov on Friday, May 9, 2003
Trata-se de um romance sob a forma epistolar: cartas escritas num hotel de Veneza por um australiano que resolveu fazer uma viagem por estas bandas (Itália, Suíça) depois de tomar conhecimento de que estava infectado com o vírus da sida - supõe-se, pois a palavra maldita apenas é insinuada (numa ocasião, a partir do momento que a palavra é pronunciada, cessam determinados contactos: “fora quebrado um tabu” (p. 97). Existe um razoável número de Notas, da autoria de um tal Igor Miazmov, frequentemente críticas das afirmações do autor das cartas, dando-lhes assim um ar “realista” (um velho truque da epistolografia). Há também um companheiro de hotel, o Professor Eschenbaum, com quem conversa frequentemente e que acaba por se tornar no “autor” de boa parte do livro.

Para além deste “enredo”, são inseridos no texto dois relatos autónomos. Um deles é uma espécie de conto das “Mil e Uma Noites”, apresentando-nos a história atribulada de um alfinete ou “Amuleto de Ouro”, jóia que figura “um homem extremamente bem apetrechado a copular com uma mulher de longos membros” (p. 53). À medida que o alfinete vai passando de mão, uma maldição vai atingindo aqueles que dele se apossaram de forma condenável. O conto, que depois se transmuta na história (verídica ?) da baronesa de St. Leger, é relatado por Rachel, uma senhora que o autor encontra por acaso, ostentando o alfinete, numa viagem de combóio.

O outro conto, o qual constituiu, para mim, a melhor parte do livro, é o da “Cortesã Desaparecida”, a história de uma jovem sem meios (Camilla) que, por força de maquinações e intrigas, acaba por subir bastante alto na escala social, na Veneza do século XVI. Par além da atraente intriga, expõe-se de forma crua a vacuidade masculina no jogo da conquista amorosa e da ostentação social (iniciando-se na página 122, prolonga-se por mais que um capítulo).

As referências directas à homossexualidade são escassas. Há um relato inicial da relação do autor com Peter (seu companheiro e destinatário das cartas) na época em que um “Arcanjo Gabriel” lhe “anuncia” a doença. O Professor Eschenbaum é quem mais se espraia sobre o assunto: “O andrógino, o homossexual, o delinquente sexual, são sempre vistos pelos vizinhos e pelas tias como tendo um comportamento irresponsável. Ficam sempre tão aliviados quando compramos uma casa, assumimos um compromisso, pedimos um empréstimo ao banco, assentamos...” (p. 220)

Há duas referências interessantes a Casanova. Uma é a de que ele chocou a Inquisição, não apenas com os seus costumes dissolutos para com o sexo oposto, mas com o “ataque flagrante à base da sociedade veneziana: a família heterossexual”, pois Casanova estaria sexualmente envolvido com três poderosos venezianos (p. 219). Esta revelação, do Professor Eschenbaum, é complementada com outra: a de que o sevilhano D. Juan teria sido “el jefe supremo de um círculo homossexual secreto descoberto em Madrid, em 1622” (p. 218). Quem nos salva, heterosexuais de todo o mundo, quando os "mitos fundadores" se começam a passar para o outro lado? [bem, esta tirada foi um tanto ou quanto "politicamente incorreta, não acham? ]

A outra referência a Casanova decorre de uma comparação com Marco Polo: “Polo descobriu o paraíso algures, viajou até lá e depois voltou”. Enquanto que Casanova “descobriu o paraíso no viajar (...) não era um sítio onde se pudesse voltar” (p. 219).

O nome de Portugal é invocado diversas vezes. O feito de Vasco da Gama na abertura da rota marítima para a Índia é referido como tendo contribuído para o declínio de Veneza (p. 122) facto depois menorizado pelo autor das Notas, alegando que já antes os Fenícios tinham circum-navegado a África (p. 181). A isto segue-se, em defesa da originalidade portuguesa, uma Nota do Tradutor (que, neste jogo de espelhos, quase pareceria da autoria de Dessaix, mas nem ele se lembrou de complicar tanto a “autoria” do livro).

Há uma baronesa que insiste em dormir em quartos voltados para o norte, socorrendo-se de “uma velha bússola portuguesa” (p. 86). Ficamos também a saber que só “quando o terramoto de Lisboa torceu e deslocou as traves do tecto” do cárcere de Casanova, em Veneza, é que este “começou a alimentar a esperança de que talvez um dia, se lhe apresentasse um meio de escapar” (p. 118).

Há uma larga apreciação da vida de St. António, desde o seu nascimento em Lisboa até ao fim da sua vida, e mesmo até à sua influência actual. O autor das cartas, começando por revelar que “não é nada o meu tipo de santo”, associa-o depois aos piores horrores da Inquisição e declara-o cúmplice de assassínios em massa. Mas o que ele parece abominar mais no Santo é a sua “renuncia ao instinto”. Choca-o que, com 15 anos, Fernando Bulhões peça à Mãe Celeste para ser salvo da “tentação”, a qual seria talvez o “desejo de copular”. O autor baseia esta sua análise num opúsculo sobre a vida do Santo, sobre cujo autor ele próprio afirma: “quem escreve este tipo de porcaria devia ser fuzilado”(p. 202-205). Mais uma vez, uma nota do comentador Miazmov vem colocar água na fervura, considerando o relato “bastante impertinente” e divergente de “outras interpretações mais sóbrias e eruditas” (p. 236).

Os leitores de Patrícia Highsmith decerto apreciarão as referências à escritora e ao seu Ripley. O autor das cartas chega mesmo a encontrar-se com ela, conduzido a sua casa num errático Volkswagen Carocha, onde falam sobre os livros da escritora (p. 37-40).

Todo o livro está recheado de referências artísticas e literárias. A mais importante, frequentemente citada e que condiciona a própria evolução do romance, é a Divina Comédia, cujos Livros são abundantemente convocados e avaliados por justaposição com as sensações experimentadas pelo autor na sua viagem pelas cidades italianas. Sensações frequentemente desencantadas: “não há muito que fazer em Veneza (...) Assim são as viagens modernas. Cheias de movimento mas nada acontece verdadeiramente” (p. 169). Numa referência a Aschenbach, personagem central de “Morte em Veneza”, escreve que “além de algumas dificuldades com a bagagem, nada lhe aconteceu verdadeiramente que não fosse pura fantasia” (p. 225). Embora sem qualquer sentido depreciativo, poderíamos dizer o mesmo do livro de Dessaix.

Trata-se, afinal, de uma viagem interior, uma reflexão sobre a vida e a sexualidade, da parte de um homossexual com a sua própria vida ameaçada - reflexão mediada pelas referências culturais a monumentos e livros que se reportam ao espaço simbólico das cidades italianas. O choque entre a beleza idealizada dos monumentos e dos relatos literários, por um lado, e a fealdade que realmente encontra quem circula pelos sítios, por outro lado, pode ser entendido como uma metáfora da vida e da morte. “Viajar é, ao fim e ao cabo, fundamental para o modo como nós, seres humanos, nos vemos e atribuímos um significado às nossas vidas.” (p. 211)


Journal Entry 2 by joaninha from Porto - City, Porto Portugal on Wednesday, July 2, 2003
As histórias de Camilla e da Baronesa de St Leger não me interessaram particularmente, mas a história de Robert Dessaix sim.

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